Eterna vítima - Guerra Junqueiro (Espírito)
Na silenciosa paz do cimo do Calvário
Ainda se vê na cruz o Cristo solitário
Vinte séculos de dor, de pranto e de agonia
Represam-se no olhar do Filho de Maria
Abandonado e só na aridez da colina
Sofre infindo martírio a vítima divina
Açoitado, traído e calmo, silencioso
Da Terra ao Céu espraia o seu olhar piedoso
Dois mil anos de dor, e os seus cruéis algozes
Passaram sem cessar como chacais ferozes
Caravanas de reis nos tronos passageiros
Exaltados na voz das trompas dos guerreiros
Os lendários heróis no dorso dos corcéis
Inscrevendo com fogo as máximas das leis
Cavalheiros gentis, valentes brasonados
Nobres de sangue azul nos seus mantos dourados
Viram-no seminu, na cruz, ensangüentado
E puseram-se a rir do louco supliciado!
O Cristo continuou, humilde e silencioso
Espraiando na Terra o seu olhar piedoso
Sábios do tempo antigo abrindo os livros santos
Olharam-no também, partindo como tantos
Artistas e histriões, poetas e trovadores
Castelãs juvenis, turbas de gozadores
Inda vieram; depois, aqueles que em seu nome
Espalharam a treva, o pranto, a guerra e a fome
Desolação e horror, mataram-se os irmãos
Lobos, tigres, chacais, na capa dos cristãos
Contemplaram Jesus no cume da colina
Multiplicando a guerra, as lutas e a chacina
O Mestre prosseguiu, sublime e silencioso
Espraiando na Terra o seu olhar piedoso
E na época atual a caravana estranha
Estaca no sopé da árida montanha
Mas os soberbos reis e césares antigos
Hoje mais nada são que míseros mendigos
Os nobres doutro tempo, agora transformados
Nos párias do amargor, nos grandes desgraçados
Agora vêem, sim, no topo do Calvário
O sacrifício e a dor do eterno visionário
Bradando com furor: – “Socorre-nos Jesus!
Que possamos vencer a dor em nossa cruz
Sorvendo o amaro fel nas dores da aflição
Temos fome de paz e sede de perdão!”
E o Mestre da bondade, o anjo da virtude
Estende o seu perdão cheio de mansuetude
E do cimo da cruz, calmo e silencioso
Consola a multidão com o seu olhar piedoso