A cidade me paga. Me paga algum dinheiro qualquer pra que tarde da noite na madrugada de algum dia de semana eu saia da cidade e me mantenha quieto e só contra a escuridão quieta e só da noite quieta e estrelada ou não.
A cidade me paga. Me paga algum dinheiro qualquer pra que eu vá sentar lá no penhasco, ali um pouco além, junto do mar. Pra que exatamente eu fique ali um pouco além dos limites da cidade (que repousa já não tão à beira-mar...). Ali. Vigilante. E num certo sentido, alheio.
E é no breu que aflora o marulho vibrante. As baixas freqüências. O vento frio é doce e obedece à vida noturna: que tipo de resposta eles tão querendo que eu arranje imediatamente? Será que eu sou só café-com-leite?
A cidade me paga. Me paga algum dinheiro qualquer, e fica tudo por minha conta, tudo surdo, tudo apegado: a brisa do mar - agora chorosa - volta a cantar. Me conta de flores (já que as estrelas estão esgotadas). A meia-lua não entra. Meia-noite e meia. E nada.
Rastros de nada, nada de certeza reta. Feliz ou infelizmente, perguntas e mais perguntas. Esses leques de perguntas não têm fim, são simples e sem resolução. Matemáticas que não dependem de mim.
E eu volto pra a cidade com leques de perguntas sem fim. Sem chance. Eles querem respostas, propostas, fatos, qualquer coisa visível a olho nu. Um simples refrão já resolve, mata de contentamento. Mas por ora o que temos são perguntas.
Pergunta, resposta, coisa nenhuma, ninguém: eventualmente o vazio espesso sugere a sensação da presença ou da ausência de um deus. E ele esteve ali, agora mesmo, aos urros. E não deixou rastro um segundo depois (tendo ou não estado ali um segundo atrás).
E uma breve vez os ruídos no precipício foram sussurros de namorados. Eu me atirei pra a cidade, alegre. Dúzias de canções de amor na mão. Canções em que todos são felizes para sempre. Por quase um dia ou dois.
Não.
Na noite seguinte eu já confrontava a figura do penhasco na friagem marítima e a palavra especular tornava a ter o sentido justo de uma noite alguém sair do centro da cidade, transpor as muralhas, ir reto e lerdo pro centro da noite e nas beiradas do penhasco se tornar micróbio, respirar fundo e, sem pestanejar, saltar ligado, com os olhos bastante arregalados, rumo a novas coisas nenhumas. Esquadrinhar com as unhas um momento de pedra antes que ele atinja a velocidade do infinito. Ir dar de cara com rochedos incertos, costões antigos, o gosto salgado - gelado - das tais perguntas de sempre. Possíveis ou
impossíveis de fazer. Possíveis ou impossíveis de se perceber quais são. Possíveis ou impossíveis de se entender onde querem chegar.
E se incrustrar à não presença largada lá, lembrando, mais que escondendo, o quê e quem nos chegou pelas praias. Lágrimas de saudade. Lágrimas de remorso. Sua cabeça eternamente baixa. E um olhar que, enquanto isso, media possibilidades... A cidade me paga. Me paga algum dinheiro qualquer pra que tarde da noite, no meio da madrugada, eu saia da cidade quieto e só e vá penetrar a vertigem a seco, e vá perder o equilíbrio sobre o penhasco, além dos limites da cidade, tipo assim um farol desnorteado que chorasse de dor ao perceber que tenta clarear um caminho que não tem o poder de enxergar com a alma.