Patrocínio Vaz Ávila - Romance do Tio Abel Lyrics

Nove leitos de hospital,
Paredes e rostos alvos...
...E o cristo crucificado,
Olhando - compadecido -
Aquele arrastar de cruzes
De miséria e de doença...
...Restolhos de tempo antigo
Naquele quarto de dores.

Pinga o soro endovenoso
Em contraponto ao gotejo
De uma sonda intra-uretral...
- Eu pareço um surrão furado,
Água que botam por riba
Sai dereto lá por baxo!
E um xistoso e dolorido
Sorriso, de meia-boca,
Aviva o rosto do abel.

Aquele corpo que outrora
Soube agüentar muita lida
De cercado, de mangueira
E de lombo de cavalo,
Hoje afocinha no pasto
- No sobre-lombo de um pealo -
De oitenta anos bem postos
Que a vida, porteira-a-fora,
Vem lhe ajeitando a mangueada
- Costeada da “tar da prosta” -
Direito à cruz de pau-ferro,
Na costa de uma picada.

- Por que é que o tar Deus dos branco
Faiz isso co´os negro véio?...
...Por que é que a morte não veio
No estôro duma rodada?...
- E aquela tropa morruda
Que nóis atiremo n´água
No passo dos enforcado
- Camaquã de gaio-a-gaio -
E o meu gateado cabano
Se entregô pra correnteza...
...Não fosse a cola dum tôro
Que me cruzô no costado!...
- Por que é que o tar Deus dos branco
Não me feiz essa gauchada?...

- Morrê não é o bochincho!...
...Morrê sozinho é que é!
- Não tive fio o muié
Que me ajudasse estas hora.
- E essa mardita demora
Em dá co´a cola nas pedra!

- E o neto do patrão véio,
Que hoje trabaia no povo,
Nessa tar de capitar...
...Quando guri, só andava
Grudado na mi´as bombacha...
...Por que é que tempo não acha
Pra vê os que le pertence?...

- Moça, óia aqui...
...O meu braço tá inchando!...

A enfermeira...contrariada
Com a pouca remuneração,
Sem a menor caridade
Ou compaixão ao seu próximo,
Ainda xinga o negro velho
Quando a agulha sai da veia.

- Quem será que vai cevá
O mate do meu patrão?...
- Quem será que vai ficá
I'm riba do fogo grande
Pra não dexá isfriá as marca
Nos dia de marcação?...
- Quem vai insiná os negrinho
Como se encia um cavalo?...
- Quem vai descascá marmelo
E mexê tacho de doce
No calorão do verão?...

- Quem vai mostrá pros mais novo
O rasto da capinchada
E o sinar das resbalada
Nas barranca dos arroio?...
- Quem vai insiná os negrinho
A pialá de bolcado?...
- Quem vai desfazê os mandado
Quando a tormenta se enfeia?...

- Quem vai - de garganta cheia -
Cantá um chote bem marcado,
Fazendo viola e costado
Pra cordeona botoneira?...

- Quem vai contá pros negrinho
Do tempo em que o avô deles
Boleava toro aragano,
Das gadaria bagual?...
- Quem vai mostrá pros mais novo,
Ou pros criado no povo,
Que home e cavalo novo
Se conhece pelos óio?...

- Tá na hora do remédio,
Abre a boca, seu abel!

- Isso é amargo como um fel...
...Se, ao menos, viesse um mate!...

E um sol ilumina o rosto
Desbotado e descarnado,
Num sorriso de alegria,
Que há muito já não saía
Da boca do negro velho.

- Trouxe um mate tio abel...
...Custei um pouco, mas vim...
...Acaso o senhor achava
Que o seu negrinho mimoso
Não ia deitar o toso
Pra cuidar do negro velho?

- Acaso o senhor pensava
Que o seu negro não lembrava
Daquele tempo passado,
Quando só andava grudado
Nas dobras da sua bombacha?

- É certo que lhe agradeço
Por me ensinar o que sei...
...E se achei rumo na vida
Sei de pronto, e com certeza,
Que é por saber com clareza:
Trago na alma a firmeza
Que dos antigos herdei.

- Agora sim, Deus dos branco,
Que o meu negrinho já veio!...
...Agora esse negro véio
Pode morrê descansado!...
...Que os tempo não são os mesmo
E os home tamém não são!...
...Mas quem plantô bem-querença
Nos cercado da amizade,
Colhe amor e leardade
Nas safra do coração!
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