Meu estimado leitor
Veja esse caso passado
Com Zeca de Pedro de Elias
Neste sertão maltratado
Onde palma pra comer
Não tinha pra dar ao gado.
Muita gente conta o caso
Repete no mei-da-feira:
Zeca dormia no chão
Só forrado com esteira
Duas rês era seu gado:
A Encantada e a Leiteira.
Ele não lia de nada
Como conta Piritiba
Mas calculava tarefa
Sem precisar de escriba
Se notava a habilidade
Do véio cortando maniva.
Labutava o dia inteiro
E, de noite, pra dormir
Só tinha um rancho apertado
De paia de licuri
Queimava bosta de boi
Pros mosquitos repelir.
Era um bom pai de famia
E pra poder atestar
Criou nove bacuris
E mais quisesse chegar
Mas o seu maior tesouro
Agora vou revelar:
Zeca criava um jumento
De Passo-Preto, se trata
Encabrestado em sedém
Sela da mão de Zé-Prata
Mas quando o jegue cismava
Enveredava na mata.
Era um bichinho treiteiro
Bom de carga e bom de trote
Mas não querendo ser pego,
Se laçavam seu cangote,
Corria horas sem rumo
Peidando em escala e mote.
E na verdade eu lhe conto:
Além desse quiprocó,
O maior feito do asno
Vinha do seu fiofó
Soltava peido afinado
Na escala de sol maior.
E quando se precisava
Transportar mourão de aceiro
Quarenta estacas no lombo
Pra Zeca ganhar dinheiro
O treiteiro jegue escuro
Carregava bem faceiro.
Certa vez na Baixa-Seca
Ao descer uma ladeira
Tião voou da cangalha,
Espatifou na poeira
Arranhou o céu da boca
Destroncou a sobrancelha.
Correu, doido, oito léguas
Por dentro do gravatá
Com mandioca na carga
Socada e sem arrochar
Fez tão veloz uma curva
Que cagou no caçuá.
E com feito tão incrível
Seu Zeca foi obrigado
A pear o Passo-Preto
Deixando bem encangado
Num pasto de murundu
Com cinco arame farpado.
Um peão desavisado
Certo dia lá passou
E, com preguiça de andar,
Logo se entusiasmou:
- Vou montar nesse pretinho
E um plano arquitetou.
Colheu um naco de aipim
Cortou cipó de macaco
Escondeu numa coivara
Sua cabaça e o saco
Pulou no lombo do jegue
Grudou que nem carrapato.
Passo-Preto aquietou
Pois tramava uma arapuca
Sacudiu suas orêia
Tangeu os bichos da nuca
Acho que o peão mexeu
No cão foi com vara curta.
Se embirou com cipó
Soltou sorriso bonito
Pense aí meu leitor
No zóio dum muar aflito
Urrou e zarpou a mil
Êta furdunço esquisito!
Mergulhou no calumbi
No espinheiro, seu moço
Lapou o peão no meio
Fez um rasgo no pescoço,
Onde termina a coluna,
No fim do intestino grosso.
O homem, desesperado,
Rezou um terço e chorou
O jumento bem treinado
No som do peido ecoou
Os óio do podre coitado
Saltou da terra e voltou.
O jegue cobriu num pulo
Vinte moita de cinzá
E a mais de cinco léguas
O povo escutava o ah!...
O coração e o intestino
Foram pro mesmo lugar.
O jegue já tava em pelo
Pulando em tanta lonjura
Que a calça sumiu na mata
A cueca, inda procura
Onde antes era o saco
Tinha um metro de assadura!
Ficou três dias pulando
Daí resolveu parar
O peão ergueu a vista
Pra mode se orientar
As placas da variante
Apontavam o Ceará!
Estatelou pelo chão
Por demais arrependido
Não sentiu suas orêia
O nariz virou ouvido
Trinta ossos se quebraram
O pinto tinha sumido.
Faltava um dedo mindinho
E via c'um olho só
O joelho retorceu
E seus braços deram um nó
Difícil de distinguir
Antebraço e mocotó.
O corpo todo moído
Que nem um coco ralado
Fez força pra defecar
O boréu tava tapado
Um toco, numa das quedas,
Entrou e ficou quebrado.
Tentou voltar para casa
Buscando o sol como prumo
Querendo ficar curado
Pegou mastruz e fez sumo
Encontrou atrás dum dente
Antiga lasca de fumo.
Por muito mais de semana
Zanzou pelo Ceará
Caronou num caçambeiro
Que viajava pra cá
Pra comprar jaca e banana
Lá em Tapiramutá.
Depois andou mais dez léguas
Pra onde tinha habitado
Jurou a São Benedito
Pra frente ser comportado
Sem saber que Passo-Preto
No pasto tinha chegado.
O peão não quis saber
De mexer mais no alheio
Desliga o rádio de pilha
Quando o assunto é rodeio
Mas Zeca de Pedro de Elias,
Quando escuta, fica cheio.
Se sabe qu'é pra tocar
Beiço de jegue atrapaia
Mas não é por essa boca
Que o maestro ensaia
É por outra embocadura
Onde o trombone não faia.
E é por isso que o povo
Vive hoje a solfejar
As canções de Passo-Preto
E se, acaso, duvidar
Pergunte a quem viu de tudo,
Nosso Tôi do Ceará.
Depois do caso passado
Percorreu todo o sertão
Depois voltou para casa
Sem sofrer um arranhão.
O jegue se aposentou
Ganhando mais que o peão.
E quem não crê nos seus feitos
Levando o caso na farra
Quando vai pagar pra ver,
Ao montar, no chão se esbarra.
Soube que o jegue afinado
Já regeu até fanfarra.
Como nada é para sempre
Dizem que um roceiro atento
Viu quando o jegue correu
Voou e sumiu no vento.
É corneteiro, no Céu:
Aumento mas não invento!
Zeca vendeu Encantada,
Retalhou toda a farinha
Desmanchou o rancho véio
Chamou a esposa Vaninha.
Hoje vivem de lembrança
Lá pras bandas da Baixinha!
O povo sem precisão,
A lenda do bicho atocha.
Onde tiver multidão,
Parede, pincel e brocha,
Bagunça e confusão,
É o jegue tocando arrocha.