Já sofri meio mundo nessa vida
De chicotada à falta de comida
A palma da minha mão é grossa com razão
Desde pequeno que sou homem
Eu não tive infância não
Deus me deu as terras africanas, as matas
Homem branco malfeitor
As tomou e as dominou
Daí
Fui arrancado dos meus,da minha terra
Pra ser mercadizado que nem coisa, que nem peça
Nos caminhos
Já morri aos milhares
Em navios negreiros e atirado aos mares
Meu resto que sobrou, que suportou o maltrato
Foi medido, pesado, posto à venda, comprado
Depois de infinitas chibatadas
E já há muito eu nem falar minha própria língua
Passei a ser cidadão de segunda categoria
Fui posto pra fora com uma carta de alforria
Sem uma pataca, sem moradia
De que estar livre ali me valeria?
Eu tive de voltar a ser escravo e ver um meio
De conquistar o meu espaço que me era de direito
Fecha o bico nêgo!
Baixa a crista nêgo!
O fantasma escravocrata do sistema me dizia
Cê num pode nêgo!
Eu te mato nêgo!
O jagunço do mato, pau mandado, me dizia
Nasceste vassalo e morrerás vassalo!
O senhor de engenho me dizia e ria
Sai do nosso meio, te enxerga nêgo!
A sinhá com medo e com nojo me dizia
Puseram umas cordas em minhas costas
Ditaram-me suas falsas normas
Mas eu me desprendi e saltei pra vida real e
Fora da prisão mental
Me chamam de antissocial
Opressores, opressores ouvem meu canto, porém
Não entendem o que canto
Não sabem que meu canto atrai a liberdade
Que revigora minhas asas
Preu voar nos belos campos
Campos esses nos quais
Regozijando-me enfim
Semearei meu encanto
No coração da sofrida e cansada mulher guerreira
Como no coração do sábio homem manso
Meu canto é veneno pro racista
É punhal cravado no peito do preconceito
Infeliz é o negro que pisa em outro negro
E que faz de tudo pra ser tudo, menos negro
Por que negro que não vê irmão negro
Certamente não se enxerga no espelho
O negro que se respeita e que passa respeito
Incondicionalmente
Ah, esse sim é negro!
Pra esse tenho meu canto mais forte
Que é pra livrá-lo de todo o pesadelo
Um canto forte pra um forte negro
De um preto pássaro
Pássaro preto